segunda-feira, 4 de abril de 2011

Uma Carta para Cris

Uma Carta de Memória (I), Por Isa Jinkings

Próximo de minha casa está localizada a Livraria Jinkings, cujo dono, Raimundo Jinkings, jornalista, o conheci pessoalmente, bem como, D. Isa, avó de Carol e mãe de Antonio, para dizer alguns que conheço, ainda. D. Isa, 77, esposa de Jinkings, reside atualmente em Florianópolis e nos correspondemos via e-mail, depois de perder a oportunidade de entrevistá-la por cá. Bem, no primeiro momento, esta era a ideia básica. Pedi à avó de Carol que falasse sobre a sua memória de uma Belém que ficou distante e que se distancia cada vez mais no tempo. D. Isa pediu-me meu endereço para mandar(carta) uma correspondência, como nos velhos tempos. E hoje, 31 de março, a recebo, feito um click na tomada, para iluminar o meu mundo. São cinco páginas, 10 no total(frente e verso), datada 24/março, e 29/março, dos Correios.

Gostaria de esclarecer(rsrs), que em nenhum momento pretendi magoá-la, ou seja, identifico como ruído na comunicação, quando lhe perguntei de seu gosto pelos livros, através do Jinkings. Contudo, saiu-me providencial a provocação não intencional, porque esta é a D. Isa. Uma mulher forte, decidida, companheira, letrada, e por isso fiz questão de que constasse a sua observação. Em segundo lugar, os nomes citados na correspondência são personagens da História de nosso estado, como o do professor Francisco Mendes. Terceiro, aguardo o 'momento mágico' quando os dois se conheceram. E quarto e último, espero, idem, como surgiu a Livraria Jinkings. Vou dividir esta memória, em duas partes. Confira a primeira:

Uma Carta de Memória(I): Por Isa Jinkings

Falar do que Belém tinha e não tem mais é lembrar da minha casa, de meus pais e irmãos, de uma infância feliz, mesmo – e até por isso – na convivência de hábitos simples, um lar onde aprendemos, eu e meus seis irmãos, a dar valor a cada coisa, mesmo às pequenas coisas, e onde testemunhamos o amor de nossos pais, entre os quais nunca vimos o menor desentendimento. Que nos ensinaram, com seu exemplo, a ser honestos, a ser generosos, a ser verdadeiros.

Meu pai era um sábio. Falava sempre de sua 'santa terrinha', o Portugal de suas muitas histórias. Citava autores e livros, citava fábulas, cantava, desentoado, as cantigas folclóricas de sua infância. Foi um precursor do que chamamos hoje de método cooper, das caminhadas. Era um naturalista. Não comia açúcar, comia pouco sal. Em nossa mesa havia muita fartura de frutas e legumes. Era ativo, trabalhador, decidido, incansável. Apesar de tudo isso, morreu aos 61 anos. Nossa primeira grande perda.

Minha mãe era uma fada, bondosa, inteligente, tão perspicaz e intuitiva que decifrava o olhar de cada filho, adivinhava nossos pensamentos. Gostava de música, acompanhava a história política. Cantava para nós as mais belas canções de seu tempo. De fala macia e andar tão leve que parecia deslizar, suas mãos lindas eram também mãos de fada. Os trabalhos que fazia – bordados, crochê, bilro, tenerife, etc – eram deslumbrantes. Ninguém a ensinou, aprendeu tudo sozinha.

Foi nesse ambiente de amor e de paz que crescemos, nós sete. Nossa rua (Tamoios, entre Tupinambás e Roberto Camelier) era larga, com muitas mangueiras, debaixo das quais nós tomávamos deliciosos banhos de chuva ao mesmo tempo em que juntávamos as mangas que caíam aos montes. Eram casas grandes, com jardins floridos e quintais enormes. Todos os vizinhos se conheciam. As crianças, depois adolescentes, eram amigas, meninos e meninas. Brincavam juntas, bola, pião, papagaio, peteca; e também de roda, depois do jantar (até a hora que os pais chamavam pra entrar). Que lembranças! 'Essa menina que está na roda...', 'Senhora Dona Chancha...', 'Pai Francisco...', 'Bom-dia Vossa Senhoria...', 'Terezinha de Jesus...' e muitas mais.

Minha festa predileta era a quadra junina, quando fazíamos fogueiras para todos os Santos, de Sto. Antônio até São Marçal, no dia 30, em que as fogueiras eram de paneiros, e terminava todo aquele encantamento, até o próximo ano.

Soltávamos inocentes fogos, pulávamos fogueira. Era um deslumbramento, uma das mais belas recordações de minha infância e adolescência.

São essas algumas das muitas coisas que Belém não tem mais. Os vizinhos (absolutamente toda a vizinhança), sentados às portas de suas casas, confraternizando e trocando gentilezas, como as comidas da época: o munguzá, o aluá, a canjica, o bolo de macaxeira, de milho.

Bem pequeninos, eu e meu irmão mais novo (o mais querido) íamos ao 'Baluarte', na esquina da Mundurucus com a Tupinambás, com um vintém: 'Seu Artur, quero uma bala de cuba' (seu Artur Mesquita).

Todos viviam de portas abertas, ninguém usava cadeados, nem grades, muito menos cerca elétrica, que não existia.

Tinha meus 12 anos, era muito lourinha e todos me achavam bonita (sempre fui loura, até adulta). Lembro que aos domingos à tarde meu pai gostava de arrumar o quintal – podava as plantas, varria, organizava o galpão de ferramentas, etc., e eu adorava ficar com ele, enquanto todas as outras crianças brincavam na rua.

De manhã bem cedinho íamos à missa, ele e eu, na igreja de Santa Terezinha, no Jurunas. Minha mãe não ia, dizia que rezava em casa.

Aos 12 anos ainda brincava de boneca, eu e minha amiga (quase irmã Iacy - a médica, Iacy Nazaré). Aos 13 e 14 tive muitos apaixonados, mas sempre me recusava a namorar, por timidez, por medo. Tive alguns namoricos aos 14, mas foi aos 15 (no dia de minha festa de humanista do colégio Moderno, que coincidiu exatamente com o dia de meus 15 anos) que encontrei o amor de minha vida. Não vou falar (pelo menos agora), desse momento mágico, da teia incrível que o destino teceu em torno de nós dois, duas quase crianças que se viram envolvidas irremediavelmente nos fios dessa teia. Só vou resumir que esse amor durou 46 anos, e eu falo de amor, não só de convivência. E gerou cinco filhos, 15 netos e quatro bisnetos. Hoje a família é acrescida de genros, noras, ex-genros e ex-noras, todos muito queridos.

Também me perguntas se aprendi a amar os livros, a literatura, através do Jinkings (eu sempre o chamei Antônio e não sei se interpretei certo, mas achei uma colocação um tanto machista).

Bom, o meu amor me ensinou muitas coisas (também aprendeu outras coisas comigo), mas eu sempre li, desde criança. Lembro que foi minha irmã, Irene que me deu meu primeiro livro, do Érico Veríssimo – 'A vida do elefante Basílio' quando eu completava seis anos e já lia bem. Depois, devorava os livros da estante de nossa casa, a ponto de, às vezes, minha mãe mandar que eu parasse de ler para ajudar minhas irmãs mais velhas a cuidar da casa.

Era assim.

No curso ginasial, tive o privilégio de ser aluna da Ida Valmont (quantos textos escrevi, que eram lidos na sala, em voz alta, por ela!). Eu era a menorzinha da classe, comecei o ginásio aos 11 anos. No IEP, entrava quase em transe assistindo às aulas do inesquecível Chico Mendes de quem, encantada, voltei a ser aluna na faculdade (Letras).

Nós dois conversávamos sobre livros. Ele, muito curioso, já conhecia vários filósofos. Em seu blog há um texto que escrevi para a página da livraria, no qual falo de 'As dores do mundo'(http://livrariajinkings.blogspot.com/2009/10/um-depoimento-sobre-o-fundador-da.html). Quando éramos noivos, ele me deu dois cadernos que considero relíquias: um com poemas selecionados e copiados com sua letra linda, que já mostravam a grande sensibilidade e inteligência desse homem (um menino) que deu todo sentido à minha vida. Numa parte do caderno, só poemas dedicados às mães (ele perdera sua mãe muito cedo, e isso o marcara profundamente). O outro caderno era de pensamentos, citações dos filósofos que já lera.

Sua inclinação para a solidariedade, seu repúdio à injustiça, o conduziu ao Socialismo – foi fundador, ao lado do admirável Cléo Bernardo, do PSB (Partido Socialista Brasileiro). Cléo presidente e ele secretário geral. Do mesmo faziam parte também Jocelyn Brasil, José de Ribamar Darwich, Julio de Alencar, Gilberto Danin, Manoel Bulcão e outros que não lembro.

Que bela campanha fizemos para o Cléo, candidato a Prefeito, e depois para o Jinkings a vereador. Ele era jornalista, vigoroso e combativo, e acharam um pretexto para negar o registro de sua candidatura, já em plena campanha. Pura perseguição política, a primeira de tantas. Travou, pela imprensa, muitas polêmicas em defesa de suas ideias, da coerência que foi uma das suas marcas mais fortes.

Notei agora que estou falando dele, muito mais do que de mim. É que nossa vida foi sempre tão interligada, que ao perdê-lo eu sobrevivi, porém mutilada. Nosso grande e saudoso amigo Jocelyn dizia que éramos como siameses.

A maioria de seus artigos nós escrevíamos juntos, ou eu copidescava.

Em 64, durante um mês peregrinando por diversos endereços, perseguido como uma fera (o 'perigoso comunista, ex-presidente do famigerado CGT (Comando Geral dos Trabalhadores),,,'), nem um só dia deixamos de ter contato. Nossos parentes e amigos foram tão leais, que eu conseguia, através de esquemas inteligentes, mandar-lhe os jornais, revistas, roupa lavada, alimentos, e trocávamos bilhetes. Minha mãe, toda a família maravilhosa, foram de uma solidariedade absoluta. Nossos cinco filhos – a mais velha com 10 e a mais nova com três aninhos – sabiam da verdade por mim e se orgulhavam do pai.

A menina sensível e romântica que eu era virou uma leoa.

30 dias após o golpe, Jinkings se apresentou e foi preso com dignidade. Decidiu fazê-lo pela ameaça de demissão por abandono de emprego. Pensando na família, principalmente.

A sanha dos milicos já tinha serenado, e na prisão eu o abasteci constantemente de livros, e consegui com o comandante da 5a. Companhia que ele se alimentasse da comida de casa, que eu mesma levava, todos os dias. Durante os meses em que esteve no cárcere, eu falei com advogados, com os coronéis a quem estavam ligados os seus processos, com o general comandante, da Região, com diretores do Basa. Até a Madre Superior do colégio Sta. Maria de Belém, onde nossas filhinhas estudavam, me acompanhou numa de minhas idas ao Quartel General. Jamais imaginei que, tímida como era, encontraria essa força, acho que nascida do amor e do respeito por ele, por seu idealismo tão autêntico.

Fomos companheiros, fomos cúmplices – em casa, na formação de nossos filhos, na vida profissional, na militância política. Se eu o ajudei como jornalista, ele me apoiou e acompanhou no período em que lecionei, língua e literatura. Participamos juntos de todas as lutas pela legalidade do Partido Comunista, na grandiosa campanha de filiação após a legalidade conquistada, na conquista de assinantes para o jornal Voz da Unidade. Ele era o presidente do Partidão, o querido presidente; eu sempre fui dirigente, sempre na Executiva, ao lado de companheiros valorosos como o inesquecível José Braz, como Mariano Klautau, como Alfredo Oliveira.

Isa

(postado por Cris Moreno no blog Escrita Marginal, no dia 31/03/2011 às 15h40)

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