terça-feira, 26 de julho de 2011

A Segunda Carta para Cris

Carta Memória (II): Por Isa Jinkings

(Hoje, 02 de maio, há 58 anos, foi nosso casamento).

Cristina,

Quando falei de minha infância não citei, tantas eram as lembranças que se atropelavam, uma pessoa fundamental na minha vida, que me deu tanto amor, tanto, que posso afirmar que fui uma criança privilegiada(na hierarquia da família, ou da filharada de meus pais eu era a penúltima, entre os sete não tínhamos privilégios...). Foi a 'Neme', como chamávamos Noêmia, minha babá, aliás a pessoa que fazia tudo na casa(era já da família, em que meus pais confiavam pra tudo. Tinha trabalhado com meu pai quando solteiro e continuou quando ele casou com minha, a quem se afeiçoou, meio maternal, porque mamãe era muito jovem). Minha mãe contava que uma vez, quando eu tinha um aninho, ela estava na cozinha fazendo o meu mingau, e eu chorando na cancelinha que haviam feito para que eu não passasse, por causa dos perigos. Ao lado da cozinha era a despensa, bem grande, onde ao fundo havia uma tina(tina era uma espécie de barril, baixo e largo, onde se armazenava água). De repente eu parei de chorar e mamãe ouviu o arrastar de meus sapatinhos. Correu, desesperada, e me encontrou mergulhada, roxa, como morta. Ficou enlouquecida, então a Neme me levantou em seus braços em direção ao céu e gritou: 'Valei-me Nossa Senhora de Nazaré!', e mamãe diz que nesse instante eu chorei.

Mamãe a escolheu para madrinha de carregar, e ela sempre se disse 'o meu balaio'. A verdade é que me assumiu inteiramente, foi minha segunda mãe. Me enchia de presentes no meu aniversário; acompanhava o Círio comigo no colo. Com seis anos, eu ainda ia carregada como um bebê na procissão do Círio. Ninguém, nenhum irmão brigava comigo, que ela vinha em cima. Gostava de jogar no bicho, jogava todo dia, e sempre queria saber o que eu sonhava na véspera, para interpretar. Também pedia que eu visse que figuras de bichos as nuvens formavam ou ficava horas deitadinha no chão do pátio no final da casa olhando as nuvens que ora se transformavam num cavalo, num galo, etc. Às vezes(que pecado!) inventava um sonho pra satisfazê-la. E o melhor é que ela de vez em quando ganhava, e me dava um presente. Sempre perguntava o que eu queria, e uma vez eu pedi um boneco, um menino. Ela comprou, era lindo. Tirei as roupinhas dele e tive a maior decepção, porque ele não tinha pinto...

Enfim, esse meu anjo da guarda ainda chegou a conhecer o meu Antonio. Fomos visitá-la juntos, no hospital, doentinha. Algum mecanismo em mim fez com que se apagassem as últimas imagens dela. Não consigo lembrar como morreu. Ainda me parece vê-la, pequenina, doce, me dando na boca uma bolinha deliciosa da comida dela, que fazia com as mãos, e que era muito melhor que a do meu prato...

Mamãe contratava uma pessoa para outros serviços, porque a Neme cozinhava muito bem. Tinha uma Dona Maria, e meu irmão conta que eu estava sentada num tronco, em nosso quintal enorme, falando sozinha: 'Essa dona Maria tem uma parte de sê besta pra minha banda...'

Bom, o que eu chamo de momento mágico aconteceu com um olhar profundo e penetrante, que um moço lindo, de 21 anos, de bigodinho – que, como tantos rapazes, elegantes e sedutores, se encontrava postado à borda da calçada do Largo de Nazaré – fixou na menina loura, de 14 anos, que passeava com sua irmã oito anos mais velha e suas amigas. Era costume, época em que ainda havia coretos maravilhosos nos quatro cantos do largo, as moças passarem pelas calçadas, como se desfilassem, com seus vestidos novos – o que era outra tradição muito forte: todas as moças faziam um vestido pra cada um dos três domingos da Festa.

Aqueles olhos, fixos em mim, me tiraram a respiração, diferentemente dos muitos galanteios e gracinhas de outros, durante o passeio. Uma volta inteira, novamente passei por aquele lugar e outra vez aquele olhar fixo, insistente, parecia falar. Em seguida minha irmã foi me levando para voltar pra casa, e eu estava trêmula, com taquicardia. Fora a última volta, ela disse 'já é tarde'. E era o último domingo da Festa...

Acho que a teia começou aí, ou seus fios se entrançaram mais. (O começo mesmo foi no dia em que, com 18 anos, ele veio do Maranhão para a Aeronáutica, em Belém. Queria ser piloto, mas não havia vagas. Ele ficou, fez um curso, tornou-se cabo, e em seguida deu baixa, fez curso de enfermeiro e foi trabalhar como civil no Hospital da Aeronáutica).

Eu pensava nele, e o procurava nas ruas, no caminho do colégio, nas idas ao cinema. Ele me contou que o mesmo aconteceu com ele, procurava e não tinha ideia de onde me encontrar. Só que ele morava e trabalhava na Av. Tito Franco(hoje Almirante Barroso) e estudava à noite. Era quase como se morasse em outro município. Vinha então à cidade aos domingos, mas não nos cruzávamos. Acho que eu já desistira.

Até que...

Era final de ano e minhas irmãs comentaram sobre uma festa no dia de Ano Novo, que seria das 18 horas a meia-noite. Não sei o que me impulsionou a querer ir também, e comecei a insistir com minha mãe, para quem eu era muito criança pra frequentar festas à noite. Só iria com 18 anos. Eu adorava dançar, mas só ia, aos fins de semana, às matinais dançantes do colégio ou da UESP. Cismei de ir, contra meus hábitos bati o pé e chorei a semana inteira, até comover minha mãe.

E lá fui eu, no dia 1º, felicíssima. Minhas irmãs se espantaram, porque os rapazes logo começaram a me tirar pra dançar, e eu não ficava sentada nunca. Sangue novo...

E numa dança, eu o vi, me desestruturando com aquele olhar. Tentou várias vezes se aproximar e eu já ia saindo com alguém que chegara antes. (Haviam me ensinado que era grosseria recusar uma dança). Aí ele se colocou juntinho à nossa mesa, e me tirou para dançar. E me falou as primeiras palavras de nossas vidas: 'dança a outra comigo?' e já ficamos no salão para a próxima dança, ele segurando a minha mão, meio tímido também. Logo em seguida a festa terminou. Ele chegara um pouco tarde. Com toda a emoção e a minha timidez, tive tempo de lhe falar do meu baile de humanista, no sábado seguinte, dia 8. Que foi também o dia de meus 15 anos, cheio de alegrias e surpresas proporcionadas pela família. Como o vestido azul de tafetá chamalotado, à tarde, pra receber minhas amigas. E o lindo vestido de baile que usaria à noite, e que foi considerado o mais bonito da festa. E como as luzes se apagaram, à meia-noite, no Clube, o bolo lindo que foi trazido pelos garçons à nossa mesa, enquanto a orquestra tocava o 'Parabéns' e depois a valsa, dançada com o presidente do Clube, os meus irmãos, os amigos. Foi um deslumbramento.

(Eu não sabia que no dia 1º ele entrara de 'penetra', com um amigo. Durante essa semana, então, ele moveu mundos e conseguiu entrar de sócio, para não perder o meu baile).

O salão estava superlotado, na hora da valsa. E então ele veio, me abraçou e saímos dançando, e até o final da festa não nos separamos.

Nosso primeiro encontro foi marcado para a tarde de segunda-feira(domingo haveria reunião de parentes em casa) na Praça Batista Campos(praça querida, faz parte de nossa história). Cheguei um pouco cedo, dei uma volta, não o vi e vim caminhando até a esquina da Tamoios para atravessar a rua e voltar pra casa(estava confusa e triste). Parei para esperar o ônibus passar, e vi alguém, no ônibus, levantar apressado, mandar parar e descer à minha frente. (Tinha estado na praça, e não me encontrando apanhara o ônibus para o fim da linha, umas três esquinas depois, também confuso, achando que o tinha enganado, mas querendo tentar ainda me encontrar, na volta).

Não foi mágico tudo isso? Não foi o destino? Que estranho impulso fez com que eu me desesperasse para ir àquela festa dia de Ano? Quem, ou o que, teria feito com que chegássemos os dois, naquele exato momento, como se estivesse cronometrado, ao mesmo tempo, naquela esquina?

Naquele dia, ambos atônitos, teríamos desfeito um sonho. Quem sabe nunca mais nos veríamos. Mas a partir desse dia passamos a nos ver diariamente e seguimos caminhando pela vida, de mãos dadas, até que a morte, e só ela, nos separou, 46 anos depois. E mesmo nesse instante ele estava com suas duas mãos entre as minhas, como se eu o pudesse reter para a vida.

Cristina,

Sei que tua intenção não era que te contasse um romance... Querias que te falasse das lutas que enfrentamos juntos, que enfrentei sozinha quando ele estava na prisão, da criação da livraria, das lutas políticas. Talvez da formação de nossos filhos, dos exemplos que lhes legamos.
Mas foi fluindo, como uma psicografia. Ao lado da minha interminável saudade, acho que me consola um pouco relembrar o quanto fui feliz. Talvez esse mesmo sentimento é que me induz a acreditar, sem infelizmente nenhuma evidência, que não acaba tudo com a morte, que ainda vamos estar juntos num outro plano, que vou rever meus pais, meus irmãos, a Neme...
Considera esta carta como confidências de alguém que te respeita e se tornou tua amiga.
Na próxima vou te contar a história da livraria.
Maria Isa
http://www.morenocris.org/2011/07/memoria-de-jinkings-por-isa-jinkingsi.html#more

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