quarta-feira, 27 de julho de 2011

Isa: a Terceira Carta para Cris

Carta Memória (III): Por Isa Jinkings

Um pouco da história da Livraria Jinkings.

Tudo começou no dia 29 de outubro de 1945, dia em que Getúlio Vargas foi deposto. Nesse dia, Raimundo Antonio da Costa Jinkings chegava a Belém. Tinha 18 anos e veio com alguns amigos para se inscrever na Aeronáutica. Sua vida daí por diante foi uma sucessão de batalhas. Fora um menino pobre que enfrentara toda sorte de dificuldades. Fez curso e tornou-se Cabo da Aeronáutica, depois passou a trabalhar como enfermeiro, após aprovado num curso.

Foi assim, já como civil, que me conheceu, em 1949. Morava na Almirante Barroso e ia diariamente me esperar à saída do Instituto de Educação. Namorávamos num banco da Praça Batista Campos até a hora em que ele ia para o ginásio Pará-Amazonas, no primeiro curso noturno que inaugurara em Belém. Quando abriu concurso para o Banco da Borracha,, hoje Banco da Amazônia, ele se inscreveu. (Foi minha mãe que o estimulou). Aí começamos a estudar, juntos. No banco da Praça, aproveitávamos todo o tempo de que dispúnhamos e estudávamos português, matéria que eu dominava. Nosso livro preferencial era “Correção de frases e textos”, de A. Tenório de Albuquerque. Matemática ele estudava sozinho. O Banco da Borracha era um dos mais ambicionados empregos do Pará. Pagava melhor que o Banco do Brasil. Havia advogados, professores, profissionais de diversas áreas inscritos. E o caboclinho de Santa Helena, cursando o ginasial, foi aprovado com uma das notas mais altas, com honroso 4º lugar em Português. O tema da redação foi “A importância da navegação fluvial no desenvolvimento da Amazônia”, e ele estava justamente estudando no ginásio a bacia amazônica.

No dia 26 de janeiro de 1951 ele passou a ser um bancário do Banco da Borracha.

No “Pará-Amazonas”, Jinkings, Roberto Uchoa, um negro admirável, e Tomé Castro tornaram-se grandes amigos. Na colação de grau de humanistas, os mais de 50 formandos escolheram o Jinkings como orador da turma. Tenho seu discurso, uma de minhas relíquias.

Em 1952 entrou para o “Paes de Carvalho”, no 2º grau, e foi eleito para a diretoria do Centro Cívico Honorato Filgueiras, e presidiu a comissão que elaborou o Regimento Interno do Conselho. Ainda no encerramento do ano no Pará-Amazonas, os três amigos – Jinkings, Roberto e Tomé – ingressaram no Partido Socialista, fundando o Núcleo Estudantil em Defesa do Petróleo. Eleito o Diretório Estadual desse Partido, com Cléo Bernardo na Presidência e Jinkings como Secretário Executivo, nomes como Benedito Nunes, Julio de Alencar, Oswaldo Mendes, Alberto Bendahan, Raimundo Cavalero de Macedo, Cláudio Sá Leal, Jaime Barcessat(valoroso companheiro que morreu muito jovem), Oiram Ribeiro(outro que também morreu cedo), Irapuan Sales e outros, entre os quais jornalistas, operários, estivadores, estudantes, compunham o novo e revolucionário partido.

Na noite de Ano-Novo(1951/1952) meu amor entrou, lindo, em nossa sala toda iluminada onde meus pais, solenes, o receberam e o ouviram pedir minha mão em casamento. (As coisas antigamente eram tão mais românticas...).

Líder nas campanhas dos bancários, fazia piquetes nas greves e desenvolvia intensa luta sindical.

Foi também um dos organizadores do 1º Congresso Regional Norte de Defesa do Petróleo e iniciara sua carreira de jornalista. Escrevia semanalmente na “Folha do Norte”, no “Flash” e no “Estado do Pará”. Eu era co-partícipe de seus artigos.

Dia 2 de maio de 1953 foi o nosso casamento. Ele continuava estudando à noite, já então na “Fênix Caixeiral Paraense”, e se mantinha como jornalista.

Em 1954 nasceu nossa primeira filha, Nise Maria. Ele não entrava na sala de parto, em nenhum dos nascimentos de nossos filhos(ficava na ante-sala, nervoso, andando de um lado para o outro). Era minha mãe quem ficava segurando minha mão, e eu não imaginaria ter um filho sem aquela energia de sua mãozinha me transmitindo tanta bondade. Minha mãe contou que, quando veio correndo dar-lhe a notícia, ele chorou de emoção. E eu nunca vi um pai mais enlouquecido de amor. Ainda no hospital ele agarrava, beijava aquele pedacinho de gente.

A primeira camisinha dela foi feita da fralda de uma camisa do pai; era era tradição. Seu nome: eu tinha dado de presente a ele o livro de Graciliano Ramos “Memórias do Cárcere”, em 4 volumes, que ele classificou como o mais importante livro de memórias que conheceu. Conversávamos sobre o livro quando nossa filhinha nasceu, e combinamos de dar-lhe o nome da admirável Nise da Silveira, companheira de cárcere de Graciliano Ramos, e sobre quem ele se referia com muita admiração e respeito. Quisemos homenageá-la, além do nome ser tão bonito.

No dia 31 de maio do ano seguinte aconteceu nossa primeira separação, tremendamente dolorosa. A causa foi esta: Gabriel Hermes era presidente do Basa e candidatou-se a deputado federal. Então transformou o Banco em instrumento político partidário, inescrupulosamente. Jinkings, jornalista habituado a denunciar esse tipo de atitude, denunciou severamente esse fato, mesmo se tratando do presidente do Banco onde trabalhava. A punição veio logo em cima: foi transferido para o Acre, a pior agência do Banco, conhecida por suas endemias, entre outras desvantagens. Logo depois Gabriel perdeu a presidência, e Jinkings, que já havia lançado mão de inúmeros recursos, pelo menos teve a transferência mudada para São Luiz, como gerente, o que de certa forma era uma promoção. Nossa segunda filha, Leila, estava a caminho. Ele voltou para o nascimento de nossa Leila Maria. Um mês e meio depois eu viajei com nossas duas filhinhas, e ficamos novamente juntos, numa linda casa onde permanecemos por três anos. Lá nasceram, nos dois anos seguintes, nossos dois homenzinhos, Raimundo Antonio Filho e Álvaro Lênin. Com quatro anos de casados tínhamos quatro filhos. Eu tinha 23 e ele 29 anos. E éramos muito felizes.

Então ele foi insistentemente convidado a assumir a gerência da agência de Bacabal, que atravessava sérios problemas, com um gerente irresponsável e sem escrúpulos.

É indescritível, e impossível de esquecer, o carinho e o respeito com que fomos recebidos. Todos se encantaram com nossa simplicidade. Fomos mimados, fizemos grandes amigos.

Em 1959, fomos contemplados pela Caixa de Presidência do Basa com o financiamento para construção de nossa casa, em Belém.

Foi difícil nossa despedida. Vi muitos de nossos amigos chorando, desde os mais graduados até os mais humildes, nossos vizinhos com os quais costumávamos sentar, à noite, ouvindo-os lerem os livrinhos de cordel e a narração de histórias de assombração, crendices, fantasias inocentes que encantavam a gente. Nossos quatro filhinhos, às sete da noite já dormiam. Após o jantar, em suas caminhas, cada um com um livro de história(aqueles livros coloridos que mandávamos buscar pelo reembolso postal junto com os que pedíamos para nós, e que assim se iniciava o amor deles pela literatura), assim todos adormeciam. E então tínhamos o tempo exclusivamente pra nós dois – namorávamos, líamos, ouvíamos música, mutias vezes ele lia poesias pra nós dois; ou sentávamos à porta com os vizinhos.

Um episódio inesquecível que mostrou o quanto aquela gente amava o moço simples e generoso que chegou de repente, com sua família(todos me adotaram também, me admiravam como mãe e companheira, “tão menina”, diziam). Pois é, esse moço que introduziu um novo conceito, de competência e honestidade, na forma de gerenciar o único Banco da cidade. O gerente do Banco era a maior autoridade num município onde circulava muito dinheiro, onde viviam fazendeiros e os maiores usineiros(beneficiadores de arroz, que era o principal produto) do Estado, fornecedores para o resto do país. Estavam fartos de ser extorquidos pelo gerente anterior que, além de inconsequente, era arrogante e insensível. Nos fins de semana, fretava um avião e, junto com grandes comerciantes, viajava para São Luiz, onde todos participavam de bacanais e jogatinas. Com as promissoras que assinavam por dívidas de jogo, eram executados pelo próprio gerente do Banco, tendo muitos ficado arruinados. Com todo o cuidado e a determinação de devolver àquela praça a credibilidade e promover o progresso da cidade, o novo gerente reiniciou as operações, e foi como se uma nova era estivesse nascendo.

Bacabal também era palco de violentos conflitos de terras. Políticos e aventureiros de toda espécie haviam-se apropriado de áreas pertencentes ao Estado, grande parte das quais habitadas por nativos que viviam das plantações de suas roças. Pois bem, e é aí que entra o episódio inesquecível a que me referi: certo dia uma passeata de homens, mulheres e crianças, aqueles pequenos agricultores, que haviam sido brutalmente expulsos de suas casas, parou em frente ao Banco pedindo a ajuda de seu gerente. Os líderes já o conheciam por participações anteriores em centros de trabalhadores. Ele imediatamente se mobilizou, entregou o Banco ao subgerente e, como minha mãe estivesse conosco, ele me apanhou e fomos juntos contratar um advogado. O “proprietário” da área atingida era um importante cliente do Banco, chamado Nicanor, e havia usado de violência inominável, com capangas que, despejando as famílias de suas casas, ao mesmo tempo incendiavam tudo, queimando os pertences daquela pobre gente.

O processo correu rápido, e Nicanor foi obrigado a devolver as terras. Mas, com muito ódio, usou de sua influência junto à Direção Geral do Banco, conseguindo que Jinkings fosse removido de Bacabal. Ele imediatamente foi a Belém para esclarecer os fatos, e não sabia que os comerciantes e a população em peso haviam feito um abaixo-assinado, que exigia sua permanência e que uma comissão foi em seguida entregar pessoalmente ao Presidente do Banco, em Belém. O movimento foi tão forte que a Direção do Banco retrocedeu e o manteve no cargo, ainda mais respeitado e fortalecido.

Seu retorno, sua chegada a Bacabal foi emocionante, uma apoteose. Foi decretado feriado no município, e uma multidão se dirigiu ao ponto do ônibus, que fazia a linha São Luiz-Bacabal. Eu o estava esperando, com nossas crianças, e então fomos todos colocados em um carro aberto e foi feito um desfile, com carros, bicicletas e pessoas a pé, que se encerrou no Bancrévea, onde um almoço fora organizado, democrático, de portões abertos.

O incendiário Nicanor desapareceu de Bacabal.

Quando nos despedimos de nossos amigos, trouxemos e deixamos muitas saudades. Mas tínhamos a sensação de volta ao lar, à família, a nossa Belém querida.

Em Belém iniciamos a construção de nossa casa. Na casa ao lado moravam minha mãe e minha irmã Helena.

Nossa caçula, Ivana Maria, nasceu quando estreávamos a casa nova.

A situação política se complicava: em agosto de 61 a renúncia de Jânio Quadros, a resistência contra a posse de Jango com tentativa de golpe militar, abortado pela reação dos democratas e dos setores progressistas das Forças Armadas.

Nos anos seguintes, intensas lutas políticas, fortalecimento dos sindicatos. Em 63 foi criada a Primeira Central Sindical – o CGT – (Comando Geral dos Trabalhadores) e foi Jinkings, unanimemente, eleito Presidente do CGT. Combativo, idealista, essa foia a época em que o sindicalismo teve mais força no Pará.

Em 64 quando, no memorável comício de 13 de março, no Rio, Jango aprovou as Reformas de Base, pelas quais a esquerda, os patriotas tanto lutavam, Jinkings estava presente, e poucas vezes o vi tão vibrante.

Aí se criou o estopim para o golpe, que há tempos vinha sendo preparado pelos generais, nos cursos de tortura coordenados por Jarbas Passarinho, nas infiltrações dos espiões nas universidades, nos sindicatos, nas tramas dos “lenços brancos”.

Na noite de 31 de março, o Jinkings, após presidir reunião do CGT, em Assembleia permanente com a massa de sindicalistas, veio a nossa casa se despedir e entrou para a clandestinidade.

Me trouxe um rádio para que eu melhor acompanhasse os acontecimentos. Fiquei com nossos cinco filhinhos, que já dormiam, enquanto eu ouvia o noticiário, acompanhava a reação do povo, no Rio, a rádio da legalidade comandada por Leonel Brizola, e entrei pela madrugada inclusive ouvindo o discurso de Jango, até quando sua voz calou e a rádio noticiou que ele havia partido para o Uruguai. Não dá pra esquecer esse momento trágico; eu soluçava sozinha e pensava nas nossas crianças, e em nossos jovens, nos milhares de lutadores que passavam a rer destino incerto.

Para vergonha deles, era 1º de abril, e nenhuma mentira jamais foi tão tenebrosa, a de que eram salvadores da Pátria...

O golpe militar violento, sanguinário, evoluiu para a ditadura que infelicitou o Brasil e manchou indelevelmente nossa história por dolorosos 20 anos.

Já relatei, talvez, por alto, a prisão do Jinkings.

Ao sair da prisão, ele precisava urgentemente de trabalhar. Conversamos muito, e combinamos, ajudados pelo companheiro Sandoval Barbosa, também atingido, montar uma barraca na feira livre de Batista Campos. Eu passei a fazer docinhos que nossos meninos, Toninho e Valico, com sete e seis anos, vendiam na feira, cada um com seu tabuleirinho. Quando eles estavam na escola, eu atendia na barraca. Nossos amigos todos correram a comprar conosco, o que é uma das lembranças mais bonitas que guardamos, e um testemunho do que seja solidariedade.

Todos esses acontecimentos, eu acho, são como preliminares, explicam o nascimento da livraria, suas primeiras sementes. Como tínhamos o hábito de ler, desde crianças, e introduzimos entre as crianças esse hábito desde bem pequenas, costumávamos usar o serviço de Reembolso Postal para nos mantermos atualizados.

Enquanto sobrevivíamos como feirantes, Jinkings escreveu a diversas editoras, das quais já era um enorme conhecido, oferecendo representação em Belém. Foi uma ideia muito inteligente. Não tardaram a chegar as respostas. A primeira que nos respondeu, pela qual sempre guardamos um carinho especial, foi a Brasiliense, do grande Caio Prado Júnior, e cujo primeiro idealizador e fundador havia sido o genial Monteiro Lobato. Seguiram-se outras, e mais outras, até a ponto de termos que recusar algumas.

Registramos a RA Jinkings Representações. O Pará era carente de livros. A demanda foi tão grande, que em poucos meses passamos da representação ao varejo. E isso tudo em nossa casa, que virou como que um mercado aberto, um mercado cultural. Livros se espalhavam pelos sofás, pelas cadeiras, empilhados no chão. O trabalho de divulgação foi absolutamente pioneiro, nunca ninguém fizera trabalho igual – diretamente junto aos professores, em suas casas, nas salas de aula. E as publicações didáticas explodiram, e aí tivemos que contratar os primeiros funcionários, e então compramos duas velhas casas na rua paralela, a Tamoios, ambas confinando com a nossa, pelos fundos, todas com quintais enormes. A bagunça estilizada se transferiu. Num porão abarrotado recebíamos estudantes, professores, artistas, intelectuais que adoravam a bagunça. Era como se caçassem tesouros, e o melhor de tudo é que os encontravam.

Durante anos sofremos as maiores perseguições. Livros considerados subversivos pelos “cultos” policiais eram apreendidos, sistematicamente. Quando finalmente conseguimos construir a livraria, isso só em 1979, com um mês de inaugurada foi metralhada pelo CCC(Comando de Caça aos Comunistas), na verdade uns nazistas. Nossa casa foi atacada mais de uma vez, com pedras e balas. Um carro novo de nosso filho foi incendiado, no jardim de nossa casa. Houve ainda outras prisões, mas nós resistimos sempre.

No 2º pavimento do prédio da livraria criamos o Espaço Cultural – um amplo salão onde passamos a realizar debates, lançamentos de livros, exposições, saraus; e no qual, em 1982, foi lançada a FDO – Frente Democrática de Oposição – com manifesto, declaração de princípios e apresentação de candidatos às eleições de 82, lançando para governador Jader Barbalho.

A FDO, que abrigava todos os democratas, impingiu ao candidato da ditadura, o maléfico Jarbas Passarinho, uma fragorosa derrota.


Cristina,

No Blog do Jinkings há muita informação sobre a livraria. Então que te coloco são as minhas lembranças mais familiares, o aspecto pessoal dos fatos, mais íntimos talvez, muito nossos.
Quanto ao tamanho que ficou, eu te avisei que costumo me estender demais... Podes editar.
Um abraço amigo da Isa.

http://www.morenocris.org/2011/07/memoria-de-jinkings-por-isa-jinkingsi.html#more

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